Um nascimento para o mundo
Há muitas versões sobre o nascimento do mundo. Nenhuma delas responde a como os fatos se sucederam; são hipóteses, mitos, histórias. A versão que encontramos no trabalho seminal de Ayrson Heráclito nos conta que o mundo nasce quando nasce o amor. Pode parecer um risco usar essa palavra tão carregada de mal-entendidos, amor, para falar de um trabalho cujo conceito é profundamente cerzido, para o qual o tempo tem um papel fundamental. Mas a escolha não pode ser outra, pois a lenda aqui contada é uma lenda sobre o amor. As feridas – pipocas – que vemos em Omolu são o ponto de desencontro dele com sua mãe Nanã e o ponto de encontro entre ele e sua salvadora Iemanjá. Os mitos sabem que nada tem apenas uma função. Ensinam. Nos mitos, como na vida, nada está solto no universo, tudo se conecta, tudo se relaciona de algum modo. Iemanjá salva Omolu do que parecia ser sem saída; acolhe, cuida, lava as suas feridas, ofertando-lhe uma nova vida. É com esse ato que Iemanjá cria e instaura o ritual do banho que limpa corpo e alma, que salva, que reconecta, que liberta do sofrimento. Banho ritual tão fundamental nas culturas africana e brasileira.
Ayrson escreve sobre o seu trabalho: “O mito e a vida: no banho ritual o ato de lavar o corpo e a alma nas águas da grande mãe limpa todas as chagas, tornando seu filho, o "Jeholú", senhor das pérolas. O trabalho traduz uma velha lenda iorubana sobre o Deus negro Omolu, filho da Deusa Nanã (a lama primordial) e Oxalá (pai criador), que era marido de Iemanjá. O menino nascera coberto de feridas e fora abandonado à beira do mar para que a maré o levasse. Fora encontrado por Iemanjá em suas águas, carcomido por peixes e quase morto. A grande mãe o recebe em seu reino e lava suas feridas, efetivando a cura. Em seguida, presenteia- lhe com a mais preciosa das suas joias: a pérola negra.”
Há uma crenca inabalável em Iemanjá de que ela deve fazer tudo que esteja ao seu alcance para salvar os seus e para lhes proporcionar uma experiencia de vida mais rica. Assim, ela seguiu fazendo tudo que pôde por Omolu, não lhe bastando curar as feridas. Ela cobriu suas cicatrizes e lhe ofertou um bem precioso para que sua vida fosse próspera: a pérola negra. Ayrson usa a palavra “traduz” para dizer do seu trabalho e da sua relação com a lenda. Uma tradução é sempre uma versão. Ele não se apropria do mito com a intenção de ilustrar o que a imaginação é capaz de produzir quando escutamos as histórias oralmente transmitidas ao longo de séculos e mares. Seu trabalho nasce de um convívio longo e íntimo com esses mitos, as escolhas não são intelectualmente predefinidas, não é possível separá-lo da sua produção, nem da sua história. Levei alguns anos para entender um segundo sentido da sua traducão, que só alcancei quando ele começou a “limpar” os espaços por onde passa, a “limpar” as pessoas com quem se encontra. Só a acão respondeu: é a criacão de um mundo, sua tradução pessoal, sua versão própria. O tempo devotado ao outro - a ação de limpar com folhas ou pipoca ou água, o peso das escolhas ancestrais que precisamos transcender para que o novo nasça - indica que feridas abertas só se curam com atos de amor. E mais uma vez, na vida, assim como no mito, jamais podemos prever de onde ele surge. Cabe a quem está do outro lado, a quem foi abandonado ao mar, a quem entrou na galeria no momento da performance, deixar-se banhar.
Beatriz Franco
Texto sobre Pérola Negra _ Exposicão de Ayrson Heráclito
Curadoria de Beatriz Franco
Blau Projects Galeria – SP Agosto 2016
A Birth to the World
There are many versions of the birth of the world. None of them elucidates how the facts succeeded; they are hypotheses, myths, and stories. The version we encounter on Ayrson Heráclito’s seminal work tells us that the birth of both the world and love walk along side. It may seem risky to use the word love, as it is widely encumbered with misinterpretation, to speak about a work with such a deeply darned concept and for which time plays a fundamental role. But there is no other choice, because the legend told here is a legend of love. The wounds – popcorns – that we see on Omolu are the point of disconnection between him and his mother, Nana, and the point of connection between him and his savior, Iemanjá. The myths are aware that everything has more than one function. They teach. In myths, as in life, things do not drift in the universe; they are all connected and somehow related. Iemanjá saves Omolu from a situation seemingly inescapable. She embraces him, looks after him, and washes his wounds, offering him a new life. Through this act, Iemanjá creates and establishes the bathing ritual that cleanses body and soul, which saves, reconnects and liberates one from suffering. This ritual bath is fundamental to both African and Brazilian cultures.
Ayrson writes about his work: “Myth and life: in the ritual bath the act of cleansing body and soul in the waters of the great mother washes all wounds making her son, ‘Jeholú’, the Lord of the Pearls. The work translates an old Yoruba legend about the black God, Omolu, son of Goddess Nana (the primordial mud) and Oxalá (creator father), husband of Iemanjá. The boy was born covered in sores, and was abandoned by the sea to be taken by the tides. He was found by Iemanjá in her waters, scoured by fish and practically dead. The great mother welcomes him to her kingdom and washes his wounds, healing him. Then, she gives him her most precious jewel: the black pearl.”
Iemanjá holds an unwavering belief that she must do everything within her resources to save her people and provide them with the best. Thus, she remained aiding Omolu. Healing his wounds was not enough for her, so she covered his scars and offered him a precious gift to ensure that he would lead a prosperous life: the black pearl. Ayrson uses the word “translate” to discuss his work and his relationship with the legend. A translation is always a version. His appropriation of the myth is not intended to illustrate what the imagination is capable of producing when we listen to the stories orally transmitted for centuries and seas. His work arises from a long and intimate interaction with these myths; the choices are not intellectually predefined, as it is impossible to separate him from his production or his story. It took me a few years to understand a second meaning in his translation, which I only reached once he began to “clean” the spaces he attends, to “clean” the people he encounters. It is the creation of a world, his personal translation, his own version. Time devoted to others – the action of cleaning away, with leaves, popcorn, or water, the weight of the ancestral choices that we need to transcend so that the new may rise – indicates that open wounds can only be healed by acts of love. And once again, in life, as in the myth, we can never predict from where it emerges. It is up to whoever is on the other side, to those abandoned at the sea, to who entered the gallery at the moment of the performance, to allow themselves to be bathed.
Beatriz Franco
Text about The Black Pearl _ Ayrson Heráclito Exhibit
Curated by Beatriz Franco
Blau Projects Gallery – São Paulo – August 2016
Translation review by Maria Clara Tavares